A Evolução do Trabalho de Olheiro no Futebol
Publicado: 5/20/2025 1:02:00 PM
No mundo do futebol, a figura do olheiro — também conhecido como scout — é tão antiga quanto o próprio esporte. Responsável por observar, analisar e descobrir talentos, o olheiro ocupa uma posição estratégica nos bastidores dos clubes. Ele é o elo entre o anonimato e a fama, entre o potencial bruto e a lapidação técnica. Ao longo das décadas, a atuação desses profissionais se transformou profundamente, acompanhando as revoluções tecnológicas, os avanços da ciência esportiva e a crescente profissionalização do esporte.
Neste texto, mergulharemos na história e na evolução do trabalho de olheiro, desde os tempos em que as descobertas eram feitas com um simples olhar atento e um caderno de anotações, até os dias atuais, dominados por algoritmos, plataformas de dados e análise de desempenho em tempo real.
As Raízes do Olheiro: Intuição e Olhos Afiados
Nos primórdios do futebol profissional, o papel do olheiro era essencialmente empírico. A figura do “descobridor de talentos” surgiu de maneira informal, muitas vezes ocupada por ex-jogadores, treinadores ou apaixonados por futebol que rodavam o país — ou até mesmo bairros e vilarejos — assistindo partidas de várzea, escolares ou torneios regionais.
Na década de 1930 a 1950, um olheiro precisava ter um olhar clínico, quase instintivo. Anotava nomes em cadernos, fazia comentários ao pé do ouvido de dirigentes e raramente contava com qualquer tipo de documentação. Sua reputação era construída no “boca a boca”, e o sucesso era medido pela quantidade de jogadores revelados que “vingavam” no profissional.
É dessa época a imagem clássica do olheiro com binóculo e chapéu, anotando em um bloco ao lado do campo. Nada de vídeos, planilhas ou gráficos: apenas observação direta e feeling. Nomes como Béla Guttmann e Francisco Sarno foram pioneiros na busca ativa de talentos em campos periféricos da Europa e América do Sul.
A Era das Categorias de Base Estruturadas
Com o passar dos anos, os clubes começaram a enxergar a formação de atletas como uma forma estratégica de investimento. Nas décadas de 1960 a 1980, as categorias de base começaram a ser estruturadas, sobretudo nos grandes centros do futebol mundial, como Brasil, Argentina, Itália, Alemanha e Inglaterra.
Com isso, o trabalho dos olheiros passou a ser sistematizado. Já não bastava encontrar o talento; era preciso justificar sua indicação com argumentos técnicos, físicos e táticos. Os clubes criaram departamentos de captação, e os olheiros passaram a seguir uma cartilha de observação.
Nesse período, surgem as primeiras fichas de avaliação padronizadas: altura, peso, idade, posição, pé dominante, características principais, pontos fortes e fracos. Essas informações eram arquivadas fisicamente, e os relatórios começavam a fazer parte de processos de tomada de decisão.
Foi também nessa fase que o olheiro passou a viajar mais frequentemente, acompanhando torneios nacionais de base, como a Copa São Paulo de Futebol Júnior no Brasil, o Torneo Viareggio na Itália e o Blue Stars/FIFA Youth Cup na Suíça.
A Chegada do Vídeo: A Revolução Analógica
Na década de 1990, uma revolução silenciosa transformou o trabalho dos olheiros: a popularização das câmeras portáteis e das gravações em vídeo. Pela primeira vez, era possível registrar e rever lances de jogadores em qualquer canto do país — ou do mundo.
Os VHS se tornaram ferramentas essenciais para os scouts. Era comum ver olheiros com pilhas de fitas embaixo do braço, repletas de jogos de jogadores-alvo. A observação já não precisava acontecer apenas ao vivo. Com o vídeo, surgia também a possibilidade de compartilhar com treinadores e dirigentes os lances decisivos, os gestos técnicos e o comportamento tático dos atletas.
Essa nova ferramenta também democratizou o acesso à informação. Jogadores de regiões mais afastadas podiam ter seus jogos gravados e enviados para clubes de grandes centros, aumentando suas chances de serem observados. O vídeo foi o primeiro passo rumo à análise técnica sistemática.
A Profissionalização do Scouting
Nos anos 2000, o futebol passa por um processo de intensa profissionalização. Os clubes se tornam empresas, os treinadores viram gestores, e os jogadores são tratados como ativos de alto valor financeiro. Nesse contexto, o trabalho do olheiro ganha um novo nome: scout.
A figura do scout passa a ser tratada como especialista. Muitos já não são ex-jogadores ou apaixonados por futebol, mas sim profissionais formados em educação física, análise de desempenho, estatística ou ciência do esporte. Cursos de especialização começam a surgir — como os promovidos por federações nacionais e instituições privadas.
É nesse cenário que ferramentas como o Scout7, Instat, Wyscout e Transfermarkt se tornam indispensáveis. As plataformas reúnem dados de performance, vídeos, mapas de calor, estatísticas ofensivas e defensivas, histórico de lesões, e até comportamento fora de campo. O trabalho do olheiro agora é digital, técnico e baseado em evidências.
A observação ao vivo ainda existe, mas ela agora é complementada — e muitas vezes precedida — pela análise de dados e vídeos.
O Scout de Dados: A Era do Algoritmo
A partir de 2010, com o avanço da inteligência artificial e da análise de big data, o trabalho do olheiro entra em uma nova era: a do scouting por dados.
Hoje, plataformas como StatsBomb, Smarterscout e SciSports utilizam algoritmos sofisticados para cruzar milhares de dados e gerar rankings objetivos de performance. É possível identificar um lateral com alto índice de cruzamentos bem-sucedidos em ligas secundárias da Escandinávia, ou um volante que intercepta mais passes que a média em uma liga do Leste Europeu.
Com isso, o scout passa a trabalhar em parceria com analistas de dados, cientistas de performance e departamentos de tecnologia. É possível, por exemplo, aplicar filtros por idade, posição, características físicas e estilo de jogo, e gerar listas com dezenas de nomes que se encaixam no perfil desejado pelo clube.
O scouting também passou a ser mais estratégico: busca-se jogadores que combinem potencial técnico, valor de mercado acessível e possível revenda lucrativa. Isso transformou profundamente o recrutamento em clubes médios e pequenos, que passaram a explorar mercados alternativos, como América Central, África e Ásia.
A Observação Tática e o Fit com o Modelo de Jogo
Outro avanço fundamental foi o uso do scouting para encontrar jogadores compatíveis com o modelo tático do time. Hoje, mais do que identificar talentos brutos, o olheiro precisa encontrar atletas que encaixem no estilo de jogo praticado.
Por exemplo, um centroavante com presença física pode não ser adequado para um time que joga com linhas móveis e exige mobilidade. Já um lateral que apoia constantemente pode ser ideal para uma equipe que utiliza alas ofensivos em esquemas com três zagueiros.
Plataformas modernas oferecem análises como:
Mapas de ação por setor do campo
Comparações com outros atletas por estilo de jogo
Probabilidades de adaptação a outras ligas
O scout agora não apenas identifica talento, mas projeta adaptação, rendimento e potencial de crescimento.
O Scout no Brasil: Desafios e Singularidades
No Brasil, o trabalho de olheiro sempre teve enorme relevância, dada a vasta produção de talentos em todo o território nacional. No entanto, ainda há um abismo entre clubes estruturados e amadores.
Clubes como Athletico-PR, Palmeiras, São Paulo e Grêmio possuem departamentos modernos de observação, com redes de olheiros regionais, centrais de dados e parcerias com startups de tecnologia. Já outros clubes menores ainda dependem do olho clínico, do contato pessoal e da observação ao vivo.
Outro ponto é a informalidade no processo de captação. É comum que olheiros autônomos indiquem atletas por meio de contatos pessoais, sem vínculo formal com clubes. Essa prática, embora tradicional, dificulta a profissionalização e o reconhecimento do trabalho.
Apesar disso, o país é um dos maiores exportadores de jogadores do mundo, e o scout brasileiro vem ganhando espaço internacionalmente, com profissionais atuando em clubes europeus, asiáticos e árabes.
O Futuro do Scouting
O futuro do trabalho de olheiro será moldado pela inteligência artificial, aprendizado de máquina e análise preditiva. Algumas tendências que já estão se consolidando incluem:
Scouting automatizado: algoritmos que identificam padrões em jogos e sinalizam jogadores promissores automaticamente.
Uso de sensores e GPS: dados de aceleração, frequência cardíaca e movimentação em campo já são usados em centros de treinamento e devem ser incorporados ao scouting.
Perfis psicológicos: plataformas como o RISE identificam traços de personalidade que influenciam desempenho sob pressão, liderança e adaptabilidade.
Scouting coletivo: clubes compartilham dados e vídeos por meio de redes integradas, permitindo reduzir custos e ampliar o alcance.
Além disso, a figura do scout digital, que atua de forma remota e global, será cada vez mais valorizada. Não será necessário viajar para ver um atleta ao vivo: bastará cruzar dados, vídeos e relatórios com inteligência de mercado.
O trabalho de olheiro deixou de ser uma atividade intuitiva e solitária para se tornar uma função técnica, estratégica e multidisciplinar. Do caderninho rabiscado aos dashboards interativos com milhares de filtros, o scouting evoluiu junto com o futebol — e ajudou o esporte a evoluir também.
No fim das contas, o objetivo do olheiro segue o mesmo: encontrar talentos. Mas hoje, ele precisa fazer isso com precisão cirúrgica, justificativa estatística e capacidade de prever o futuro — tudo isso em meio a um mercado globalizado e altamente competitivo.
O que não mudou é a paixão. Porque, mesmo com algoritmos, planilhas e softwares, a essência do olheiro continua sendo aquela de quem vibra ao descobrir um novo craque escondido em um campo de terra batida. E é essa mistura de ciência, emoção e sensibilidade que torna o scouting uma das artes mais fascinantes do futebol.
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